Por Hilda Lucas
Banho de vira-lata é aquele em que você entra de quatro, se arrastando, se sentindo destruída. Você chora alto, senta no chão, cogita se afogar. Você liga o chuveiro e tudo o que você quer é se diluir, esvaziar. Você gasta sua cota anual de água, conta todos os azulejos, sai com os olhos inchados, pele de uva passa, mas sai, e esse sair é transformador. Algo sempre muda depois de um banho de vira-lata e o mais freqüente é você se dar conta de que aquele banho lhe fez bem. Um bem simples, reconfortante, que pôs você no prumo, lhe devolveu o rumo e lhe deu força para encarar o dia, a barra de viver, as feras todas. O banho de vira-lata é aquele que você toma com “seus botões de carne e osso”, com seus fantasmas, com usa impotência, seu pânico. Nele você entra sem saídas, sem respostas e pode até sair sem soluções, mas sai estranhamente apaziguada, você sobreviveu ao banho e parte do desespero escoou pelos poros, pelo cano. No banho, a drenagem do cansaço, o conforto da limpeza, a certeza de que a vida segue lá fora, pois banho é reparação.
Por isso quando vida mandar você tomar banho, vá! Vá sem medo, mesmo que se debulhando. Confie no poder do banho. Confie na função terapêutica da rotina. Enquanto dá conta de se arrumar, se alimentar, trabalhar, dormir (mesmo que com uma ajudinha…) e tomar banho significa que você está rolando os dados. A gente tem horror à rotina e isso é uma bobagem, pois é no comezinho da rotina que a vida se organiza e as dores cicatrizam. Um dia após o outro, um banho após o outro.
O banho nesse quesito é emblemático. Tão simplesinho, tão arroz com feijão, tão generoso. Nossa dose diária de esperança e entusiasmo. O banho nosso de cada dia é uma espécie de oração, de teimosia, de pacto. Na maioria dos banhos, apenas cumprimos nossa rotina de asseio e civilidade. Mas banho que é banho é muito mais que higiene.
Quantas vezes bradamos: “Meu Deus, preciso de um banho!”, certos de que o banho nos devolverá equilíbrio e força. Tomamos banho e ficamos novos, limpinhos, recompostos. Um milagre caseiro feito de água e sabão. Uma parada, um respiro, uma trégua.
(…)
A vontade de tomar banho aflora como uma urgência, uma tábua de salvação, um remédio nas horas mais difíceis e complexas. Tomar banho depois de uma situação extrema é o primeiro indício de que a vida voltará, de uma forma ou de outra para os trilhos. O banho funciona como o primeiro sim que você diz à continuação do viver.
(…)
No banho, mais que xampus, espuma, cremes, sais, há também o choro, as marcas do amor, as secreções, o medo e a convalescença descendo redentoramente pelo ralo. No banho, a possibilidade de esquecimento, de recomeço, de entrega.No banho, nosso dilúvios, nossos redemoinhos, nosso desaguar sem fim; nossos batismos nossos segredos, nossos mergulhos.No banho, os resíduos do ontem, a troca de pele, o tempo suspenso.
Saímos de hospitais e enterros pensando em banho; tomamos banho depois de brigas, demissões e discussões. Neutralizamos o desgaste do dia, do trânsito, do trabalho com um banho bem tomado. O banho é, portanto, um hiato entre estágios, interfere no tempo vivido, limpa o corpo, desperta a consciência, nos acorda por dentro. Quantas vezes pensamos no meio da correria da vida: “Daria tudo por um banho…”. Banho é refúgio, é reset.
(…) Mas tarde você analisará no banho as rugas, a flacidez, as marcas do tempo e, depois de certo assombro, tomará seu banho com a mesma diligência amorosa de sempre. No banho, a crônica da vida.
Mas só quando você toma um banho day after, você compreende a força do banho. Banho day after é aquele do dia seguinte a uma ruptura, uma tragédia pessoal. Você sabe que depois daquilo nada será como antes. A vida não será a mesma, nem você será a mesma e, no entanto, você toma banho como se tudo continuasse como era. É incrível. Sua mãe morreu e você toma banho como fez todos os dias. Você se separou e lá está você no banho, a despeito de tudo. Você perdeu um filho, um irmão, sua melhor amiga ou descobriu que tem um tumor e, estoicamente, toma banho. O santo banho, aquele que faz você voltar a funcionar, pois, no caos, o hábito é a regra de outro para que a vida se recomponha. Nessas horas, tomar banho é comovente. E você tem certeza que a vida é pura teimosia, que continua a despeito das perdas e do reveses e no banho você está apenas afirmando: estou dentro, estou viva.
Publicado originalmente na Revista Lola Fev/13
Nenhum comentário:
Postar um comentário