O silêncio diz muito mais do que se costuma ouvir de bocas aflitas, que jorram aos borbotões palavras atrapalhadas. Discursos tolos, sem aroma, nem sumo.
Por vicio ou pretensa natureza, estamos acostumados a nos relacionar com a boca. Dela emanam sons filosóficos, conexos ou desconexos. Em sua maioria vazios como bolinhas de sabão. Falas de acompanhar a gula de bolinhos de bacalhau, chopes gelados em série, alargando barrigas carentes e solitárias companhias.
— Mas do que você comentava mesmo no bar ontem à noite?
— Sei lá, eu jogava conversa fora, pra marcar presença na mesa com a galera. Sabe como é…
Palavras de vento, desidratadas. Sentenças sem lavra, emitidas por anseios anônimos. Compulsões explícitas. Oralidade sôfrega. Freud, aliás, nem sempre explica.
O silêncio também é resposta. Assume diversas vestimentas. Além de ser pergunta, é dúvida, desejo, rebeldia e até mesmo crueldade. Silêncio é sinal de poder em gargantas sábias. Alguns raros psicanalistas o detêm. Os que se livraram da arrogância faz tempo.
Também os monges budistas, em pleno domínio de reticências, pulsações e fôlego. Com disposição e concentração de sobra para não dizer nada em inúmeros momentos da vida. Mas dizendo, de outras formas, tudo. Delicadezas com os olhos, sorrisos, trejeitos e poros atentos.
A propósito, é preciso aprender a escutar as histórias emanadas pelos nossos poros. Expressas, por sinal, em raros idiomas. Àqueles dialetos da pele tão íntimos de sensações, fruições, elevações térmicas e arrepios únicos. Os balbucios dos gestos sedentos. Quantas palavras aí contidas. Ou meias palavras, todas, sem distinção, carregadas de sentido.
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Silêncio do padre na hora da comunhão. Dos fiéis — ou infiéis — que parecem rezar contritos, em bancos de igrejas ermas. Silêncio aflito durante o casamento, no instante supremo de os nubentes sentenciarem “sim” ou “não” — sob a clava de “até que a morte os separe”.
Àquele silêncio dos familiares aguardando, no auge da angústia, a notícia redentora — ou fulminante — proferida pelo cirurgião, responsável por tentar afastar a morte da criança indefesa.
Silêncio mesquinho de alguns pais, embebidos em medíocre autoridade, quando a adolescente espera nervosa e submissa pelo precioso “de acordo”, referente a ida à balada nesta noite.
Silêncio ladino do marido, ao chegar tarde em casa, após reuniões-extra no trabalho, ante as inquietações da mulher-dele-de-cada-dia.
O solene silêncio da orquestra, ao ingressar no segundo movimento de uma belíssima sinfonia de Beethoven. Do leitor, encantado com o novo romance, degustado sem pressa e sem ruídos.
— Por que você não me diz que me ama? — indaga, inconformada, a namorada ao costumeiramente silente parceiro. Por que o amor deverá sair da boca, retrucamos, se afinal ele ressoa por todas as artérias do coração?
Pena estarmos acostumados a escutar apenas as palavras sonoras. Assim, deixamos de abraçar outras letras e expressões. Perdemos outros ouvidos, no ato de crescer e endurecer. Perdemos milhares de textos, jogados ao acaso por nossa frivolidade. Lamentavelmente, não possuímos a escuta atenta de alguns orientais, calmamente à espreita, agachados em cada poro da nossa pele. Nossos olhos moucos pararam de ouvir por terem esquecido seu brilho, sabe-se lá aonde.
O silêncio também é resposta. Uma resposta doída e às vezes irreversível, frente ao término do relacionamento quase próspero. Os olhos cinzentos da perda, lacrimejam sozinhos. Devolvem ao parceiro as últimas perguntas frágeis que retornam sem eco, naquela mesa-do- abandono, bem no canto do restaurante.
Ah, quantos discursos de amor também se anunciam, apenas por intermédio das mãos e dos suspiros. Corpos que deslizam juntos e se aninham quietos, imersos, por exemplo, nas pinturas do entardecer de uma praia.
É mais um poema de encontros que se ouve sem pressa. Um poema azul, declamado em silêncio, desta vez pela força do mar.
Graça Taguti