Viver no Cerrado durante a estiagem nem sempre é fácil, mas tem lá suas vantagens. Uma delas é poder apreciar o espetáculo das quaresmeiras e ipês floridos, que enchem o campo e as ruas das cidades de cor e de beleza. Em Goiânia é fácil se deparar com uma imagem assim, basta andar um pouquinho.
Quinta-feira passada eu estava indo para o escritório, quando dei de cara com uma imensa quaresmeira, repleta de flores lilases. Ficamos, então, eu e um catador de papel apreciando a árvore. De repente, ele me pergunta se eu não tinha uma caneta usada para lhe dar. Disse que não e quis saber por que ele queria o tal objeto.
“É que eu adoro desenhar, dona. Sempre que vejo uma árvore bonita assim, abro meu caderno e faço um desenho. O problema é que não tenho giz de cera, só esse lápis velho. Queria ao menos uma caneta usada, mesmo que estivesse com a tinta fraca, só pra dar uma corzinha nos traços dessa quaresmeira”, me explicou.
Ele esticou-se sobre o enorme carrinho de ferro de coleta de papéis que empurrava, e tirou lá de dentro um caderno encardido e bem gasto. Com cuidado, foi me mostrando, folha a folha, os singelos desenhos que fazia, a cada vez que passava por uma rua da capital e via uma árvore que lhe tirava o fôlego.
O homem em questão é Seu Celestino Gomes. Piauiense, veio para Goiânia há um ano, com os quatro filhos pequenos, porque a mulher morreu no parto do caçula e ele não tinha como trabalhar e cuidar da família ao mesmo tempo. Aqui ele divide um barracão com a irmã e dois sobrinhos, no Bairro Floresta.
Por falta de formação profissional, Seu Celestino conta que o único emprego que conseguiu foi de catador de papel. Mas não se abate e ainda dá graças a Deus. “Dona, o que importa é ganhar a vida honestamente. Se a tem saúde e ganha o pão com dignidade, para todo o resto dá-se um jeito”, ensinou.
Pedi a Seu Celestino que aguardasse um minutinho e corri na papelaria perto do local onde estávamos. Comprei uma caixa de giz de cera, canetinhas coloridas e um caderno específico para desenhos. Quando entreguei tudo a ele, vi aquele homem enorme transformar-se num menino. Nunca um presente meu fez alguém tão feliz.
“Dona, não carecia disso, não! Tô até envergonhado... Mas não vou negar que fiquei muito feliz, principalmente por causa desses dois”, me disse, apontando para o giz de cera amarelo e para o rosa. “Essas são as cores dos ipês. Agora vou poder desenhá-los como eles são!”, vibrou.
Quando trabalhei na Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma), um agrônomo me explicou que as flores do ipê são, na verdade, uma resposta ao enorme estresse ao qual a planta é submetida, em função da falta de água. Diante da seca, ele livra-se das folhas e floresce, para produzir as sementes e perpetuar a espécie.
Gente como Seu Celestino se parece com os ipês. Diante de toda a aridez da vida, que pode lhes tomar pessoas queridas, dinheiro, conforto e até mesmo a paz de espírito, respondem com beleza e delicadeza. Transmutam os espinhos e as ervas daninhas em flores frescas. Desabrocham para provar que não se rendem.
Fácil não é. Há que se ter coragem para abrir o peito e deixar o novo entrar, quando o velho já nos feriu em demasia. Há que se ter disposição para esfregar os olhos cansados de ver, e transformá-los em olhos capazes de enxergar. Há que se ter desapego, pois quando o vento forte sopra, leva embora tudo o que floriu.
Acontece que não florescer é negar o ciclo da vida. O tempo da semente é necessário. Diante da dor e da fragilidade, o recolhimento e o silêncio podem ser remédios para ajudar a cicatrizar a ferida. Mas o grão não pode permanecer para sempre embotado em si mesmo. A árvore quer surgir. Quer subir. Com folhas, flores e novas sementes. Floresce quem é podado no seu amor, quem semeou em terreno estéril, mas nem por isso desiste de um buscar solo fértil, onde sua semente será lançada e dará frutos. Floresce quem teve seus planos profissionais ceifados e, ainda assim, corre atrás de novas alternativas para construir uma carreira digna e criativa.
Floresce quem perdeu seu patrimônio material e hoje busca o cultivo de bens realmente duradouros, reforçando suas raízes. Floresce quem adoeceu e luta bravamente pela vida, porque os vendavais podem até desfolhar a árvore, mas não atingem a seiva que a mantém de pé.
Floresce quem perdeu um ente querido e consegue transformar a saudade em estímulo para viver com mais sensibilidade e menos cinismo; para despir-se do que é supérfluo e valorizar o essencial. Quem superou um vício e aprendeu a viver por só hoje, fixando-se no presente e abandonando a tristeza do passado e a angústia do futuro.
Floresce quem não desiste de si mesmo, quem compreende que a vida é cíclica e que é preciso deixar fluir. Seu Celestino está aí para provar que é possível, apesar dos pesares. Você pode até não acreditar, leitor, mas eu vejo flores em você.
Fabricia Hamu
Nenhum comentário:
Postar um comentário